15.9.12

O império do grotesco


Muniz Sodré e Raquel Paiva, O império do grotesco, Mauad Editora, 2002.

Tensão do estado fronteiriço
No começo do novo milênio, torna-se cada vez mais evidente que o grotesco é algo recorrente não apenas nas artes, como também na vida contemporânea, com um retorno preponderante na televisão, sem que se registrem estudos compreensivos sobre o fenômeno. Este livro traz uma visão ampla sobre a questão, examinando a sua genealogia como uma categoria estética importante, associando-a a atitudes e deslindado o seu papel na formação de públicos de massa na contemporaneidade. O livro apresenta uma conceituação clara do grotesco como estética da tensão dos estados fronteiriços entre o humano e o animal e, depois, a sua articulação com as diversas manifestações na indústria do entretenimento, sem esquecer os seus momentos críticos. Esta análise aborda literatura, cinema e até formas de vida, com ênfase especial à televisão, cujos pactos simbólicos com o grande público privilegiam o grotesco chocante.

Erich Barlach, Par amoroso, desenho

« Nudez, sexo, fofocas. O "prato feito" da web e programas popularescos de TV infesta como praga da agricultura. Nas últimas semanas, participantes de fóruns virtuais sobre mídia martelaram uma nova expressão: "jornalismo Tiririca", referência provocativa e genial ao slogan ("pior que está não fica") da campanha do palhaço cearense homônimo a uma vaga na Câmara dos Deputados.
Bem antes da popularização da internet no final dos anos 90 (as coisas estão aí há bastante tempo), já era clichê acadêmico a denúncia do empobrecimento do texto jornalístico, a abordagem burocrática das pautas, a precária formação intelectual dos profissionais de imprensa, traduzida em baixíssimos índices de leitura de repórteres, sem falar que, no Brasil, essa categoria quase não lança livros nem sistematiza conhecimentos, na comparação com países ricos.
Com o agressivo e competitivo mercado minuto a minuto de "notícias", faltam "reportagens" e sobram abobrinhas diversionistas publicadas em tabloides e revistas que promovem "celebridades" ou falas registradas em redes sociais (como Twitter e Facebook). Será que são famosos mesmo que atualizam ou assessores e consultores de imagem? Raramente se exercita a dúvida, como recomendam manuais, dando margem a gafes como a do mês passado com a repercussão apressada da falsa história de um restaurante canibal. Domina a lógica "se todos fazem, deve estar certo", na adesão automática ao banal, insosso, descartável, digno da lavra de robôs acéfalos.
Na onda do "jornalismo Tiririca", textos são ilustrados mais com reproduções de sites, blogs e afins, uma prova de que o fotojornalismo clássico ainda não conquistou espaço relevante nos meios eletrônicos. Questionamentos sobre a qualidade do que se publica nas diversas mídias soam antipáticos, carrancudos, coisa do passado ou mau humor de minoria.
Nas críticas em fóruns, é corriqueiro relacionar os abusos das notas de entretenimento ("softnews", como preferem alguns) à incorporação de ferramentas de audiência, de comentários na web (em papel, é difícil saber se algo que está na capa de um caderno realmente terá mais leitura do que o horóscopo do dia, por exemplo).
Entre jornalistas, o roteiro convencional do "papo cabeça" esquerdista sugere lamentos constantes sobre o conceito de notícia e um apego nostálgico a um passado de engajamentos políticos e românticos que pintavam o profissional de imprensa como um mártir da sociedade, metido na boemia e nas batalhas por um mundo justo e livre. Hoje, com algumas exceções, novas gerações parecem buscar mais o vedetismo, reforçando a má fama da categoria de carregar o rei e a realeza na barriga.
Para alguns que buscam o estrelato segurando um microfone ou assinando textos que só seus colegas reparam, um bom ponto de partida na discussão do "jornalismo Tiririca" é o livro "O Império do Grotesco", adotado em disciplinas de diversos cursos (não esquecer que diploma não é mais necessário, embora seja recomendável, para o exercício da profissão). Após a leitura dessa obra, não estranhe que algum canal tenha decidido gravar um "reality show" em uma redação de jornal, revista ou de TV » (Sérgio Ripardo, Folha, 1.9.2010).

Alfred Kubin, Homens-abutres, bico-de-pena

Trecho

O grotesco se caracteriza pelo rebaixamento operado por uma combinação insólita e exasperada de elementos heterogênos, com referência freqüente a deslocamentos escandalosos de sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do corpo, fezes e dejetos.

O grotesco é o fenômeno da desarmonia do gosto, que atravessa as épocas e as diversas conformações culturais. O grotesco é algo que se tem feito presente na Antigüidade e nos tempos modernos. Atravessa tempos diversos, à maneira de uma constante supratemporal.

É antiqüíssimo, por exemplo, o procedimento grotesco de identificação figurativa entre o homem e o animal, fazendo-se presente nas fábulas e em sistemas morais. Muitas vezes, a identificação passa pela referência ao excremento como metáfora para o rebaixamento frente a valores tidos como sublimes ou para uma radical ausência de qualidades. O grotesco representa o grau zero da condição humana.

O grotesco, assim, não opta por nenhuma moral progressista ou positivista. Muito pelo contrário, o grotesco funciona por catástrofe.

A palavra "grotesco" vem do italiano "grotta", que significa "gruta" ou "porão". Em fins do século XV, escavações feitas no porão do palácio romano de Nero revelaram ornamentos esquisitos na forma de vegetais, abismos, caracóis, etc. que fascinaram os artistas da época, que passaram a chamar tais objetos esquisitos de "grotescos", em referência às grutas ou porões em que foram encontrados. Em seguida, a denominação "grotesco" aplicou-se à combinação bizarra de elementos humanos, animais, vegetais e minerais.

Sempre associada ao disforme, a palavra "grotesco" foi ganhando significados novos, em geral associados ao desvio de uma norma expressiva dominante, seja referente a costumes, seja referente a convenções culturais.

Giuseppe Arcimboldo​, Eva com a maçã, óleo, 1578

O grotesco assume modalidades diversas:

a) escatológica: trata-se de situações caracterizadas por referências a dejetos humanos, secreções, partes baixas do corpo, etc.:
b) teratológica: referências risíveis a monstruosidades, aberrações, deformações, bestialismos, etc.

No grotesco, a excrescência e o nojo são apresentados como o antídoto para a banalidade da existência humana.

O grotesco revela-se na exasperação tensa ou violenta dos contrários, com recursos da caricatura, da sátira e da ironia. Manifesta-se também pela crueldade com que se tiram os véus das regras ou das convenções ditas civilizadas.

O grotesco tem obsessão pela corporalidade humana comer, defecar, copular, arrotar, vomitar. Também se faz referência à nudez e ao sangue.

O grotesco é uma categoria ampla, com vários aspectos, capaz de aplicar-se a uma infinidade de situações: da escultura e pintura à literatura, ao cinema e à televisão.

No caso da televisão, tem-se a tendência recente desse veículo é testar os limites de sua audiência. Nossa TV caracteriza-se por uma atmosfera sensorial de "praça pública", a praça como "feira livre" das expressões diversificadas da cultura popular (melodramas, danças, circo, etc.)

A televisão para as massas tornou-se importante dispositivo de articulação de um espaço público ao constituir como seu público categorias sociais as mais diversas, sob a bandeira uniformizante do consumo de massa.

A televisão se especializou num tipo de programa voltado para a ressonância imediata, atuando sobre a imediatez da vida coditiana. E como procedimento básico a TV privilegia fortemente a óptica do grotesco. Primeiro, porque suscita o riso cruel (o gozo com o sofrimento e o ridículo do outro); segundo, porque a impotência humana, política ou social de que tanto se ri é imaginariamente compensada pela visão de sorteios e prêmios, uma vez que se tem em mente o sentimento crescente de que nenhuma política de Estado promove ou garante o bem -estar pessoal; terceiro, porque o grotesco chocante permite encenar o povo e, ao mesmo tempo, mantê-lo a distância dão-se voz e imagem a ignorantes, ridículos, patéticos, violentados, mutilados, disformes, aberrantes, para mostrar a crua realidade popular, sem que o choque daí advindo chegue às causas sociais, mas permaneça na superfície irrisória dos efeitos.

Na realidade, as emissoras oferecem aquilo que elas e seu público desejam ver. O sistema televisivo mercadológico constituiu esse público que, ao longo dos anos, tornou-se ele próprio "audiência de TV".

O telespectador, entretanto, não é vítima, e sim cúmplice passivo de uma situação a que se habituou.

Em sua existência miserável, costuma o telespectador sonhar com o acaso que o levará, pela sorte, a ser chamado pela produção de um "reality show" para transformar em espetáculo a sua aberração existencial e sair de lá com um eletrodoméstico qualquer como prêmio. O grotesco, dessa maneira, é o que arranca o telespectador de sua triste paralisia.

No tocante ao público, não se sustentam as hipóteses de um "voyeurismo" freudiano com relação ao "reality show", pois o que se evidencia mesmo não é uma sexualidade de fundo, mas a fusão entre a banalidade dos fluxos televisivos e a existência banal dos telespectadores.

Após décadas de rebaixamento de padrões, o público em geral tornou-se esteticamente parte disso que os especialistas chamam de "trash" (lixo).

Daí o império da repetição exaustiva do banal.

Bomarzo, 1528-88
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